Se é conveniente servir-se de canto a liturgia

Parece que não se deve usar cantos no louvor a Deus:

1. Com efeito, diz o Apóstolo: “Ensinando e exortando uns aos outros, em salmos, hinos e cânticos espirituais” (Cl 3, 16). Ora, nada devemos assumir no culto divino a não ser o que está transmitido pela autoridade da Escritura. Logo, nos louvores divinos não devemos usar cânticos vocais, mas somente cânticos espirituais.

2. Além disso, comentando Jerônimo este texto paulino: “Cantando e louvando o Senhor em vossos corações”; escreve: “Ouçam os jovens que têm o ofício de cantar salmos na Igreja: não devem cantar para Deus só com palavras, mas com o coração; não imitando aqueles artistas que, para preparar as gargantas e suavizar as vozes, enchem-se de medicamentos especiais; para trazer para a Igreja melodia e cantos teatrais”. Logo, no louvor divino não se deve cantar.

3. Ademais, louvar a Deus compete aos grandes e aos pequenos, como se lê no livro do Apocalipse: “Louvai a Deus, todos os seus servos e os que o temem, pequenos e grandes” (19, 5). Ora, os de maior dignidade da Igreja não devem cantar, segundo determinam Gregório e as Decretais: “Pelo presente decreto, ordeno que nesta sede os ministros do altar não devem cantar”. Logo, não é conveniente cantar no louvor divino.

4. Ademais, na Antiga Lei louvava-se a Deus com instrumentos musicais e vozes humanas segundo o Salmista: “Cantai ao Senhor com a cítara; cantai-lhe salmos com a harpa de dez cordas; cantai ao Senhor um cântico novo”(32, 2-3). Ora, instrumentos musicais, como a cítara e a harpa, não são usados na Igreja para o louvor divino, para que não se pense que ela retorna ao judaísmo. Logo, por razão semelhante, nem o canto deve ser usado nos louvores divinos.

5. Ademais, o louvor da alma é superior ao louvor dos lábios. Ora, o louvor da alma é impedido pelo canto, já porque cantando a atenção é desviada do sentido das palavras ao se prestar atenção na melodia; já porque essas palavras são menos entendidas do que se fossem proferidas sem canto. Logo, não se deve cantar nos louvores divinos.

    EM SENTIDO CONTRÁRIO, há o exemplo de Ambrósio, que introduziu o canto na igreja de Milão, segundo relata Agostinho nas Confissões.

    Como anteriormente foi dito, o louvor pela voz é necessário para estimular a afeição humana para Deus. Por isso, qualquer coisa que seja útil para isso, é assumida convenientemente no louvor divino. Também é verdade que, segundo as diferenças das melodias, as pessoas são levadas a sentimentos diferentes. A essa conclusão chegaram Aristóteles e Boécio. Por isso, foi salutar a introdução do canto nos louvores divinos para que os espíritos mais fracos fossem mais incentivados à devoção. A respeito, escreve Agostinho: “Inclino-me a aprovar a prática do canto na Igreja para que, pelo deleite auditivo, as almas fracas se elevem em piedoso afeto”. E diz de si mesmo: “Chorei ouvindo os teus hinos e cânticos, profundamente emocionado pelas vozes de tua Igreja, que suavemente canta!”.

    Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

    1. Os cantos espirituais poderão significar não somente o que se canta interiormente, como também o que as palavras sonoras dizem externamente: assim a devoção é estimulada por esses cantos.

    2. Jerônimo não condena absolutamente o canto, mas repreende aqueles que na Igreja cantam de modo teatral, não para excitar a devoção, antes para se exibirem e se deleitarem. Pelo que Agostinho diz: “Quando atendo mais à melodia do que ao dignificado das palavras cantadas, confesso que faço e devo me penitenciar: prefiro então não ouvir o cantar”.

    3. É mais excelente aumentar a devoção das pessoas pelo ensino da doutrina e pela pregação do que pelo canto. Por isso, os diáconos e os bispos, aos quais compete excitar as almas para a devoção a Deus, pelos ensinamentos doutrinários e pela pregação, não devem se dedicar aos cantos, para que por eles não descuidem das tarefas mais importantes. Na fonte supracitada, Gregório afirma: “É muito repreensível o costume dos diáconos de se dedicarem aos cânticos, pois a eles compete ofício de pregação e da distribuição das esmolas aos pobres”.

    4. Como ensina Aristóteles: “Para ensinar não se deve usar flautas nem instrumentos semelhantes, como a cítara e outras, mas tudo que possa contribuir para os ouvintes serem bons”, até porque esses instrumentos musicais movem mais a alma para o deleite do que para a formação da boa disposição interior. No Antigo Testamento, usavam-se instrumentos, quer porque o povo era mais grosseiro e carnal, e por isso deviam ser estimulados por tais instrumentos, como também pelas promessas terrenas; quer porque esses instrumentos materiais era figurativos.

    5. Quando dá muita atenção ao canto para se deleitar, o espírito deixa de considerar as palavras cantadas. Mas, se a pessoa canta por causa da devoção, mais atentamente perceberá o sentido das palavras, porque demora-se mais nelas, e porque, como diz Agostinho: “Todos os afetos de nosso espírito, conforme a sua diversidade, descobrem modalidades próprias da voz e do canto com as quais se movem, por uma secreta familiaridade”. O mesmo se aplica aos que ouvem os cânticos, os quais, embora às vezes não entendam o que se canta, todavia entendem a razão do canto, isto é, o louvor a Deus. E isto é suficiente para despertar a devoção.

      Suma Teológica II-II, q.91, a.2

      Tradução lida em sumateologica.wordpress.com


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