Com esta postagem, nós encerramos a séequência de artigos sobre o ano litúrgico e sua espiritualidade. Extraídos do prefácio à célebre obra O Ano Litúrgico, de Dom Prosper Guéranger, abade de Solesmes, esses artigos possuem reflexões extremamente profundas sobre a vida espiritual e a liturgia. Isso nos faz torcer para que possamos ver, sem tardar, a obra inteira ser publicada em português.
Essa força renovadora do Ano Litúrgico, que, em conclusão, sublinhamos, é um mistério do Espírito Santo que fecunda sem cessar a obra que Ele [mesmo] inspirou na santa Igreja, com o objetivo de santificar o tempo concedido aos homens para se tornarem dignos de Deus. Admiremos também, nesta sublime dispensação, o progresso que ela faz na compreensão das verdades da fé e no desenvolvimento da vida sobrenatural. Não há um só ponto da doutrina cristã que não seja exposto no decurso do Ano Litúrgico, e inculcado com a autoridade e a unção que a santa Igreja soube colocar na sua linguagem e nos seus ritos, que são tão expressivos. A fé dos fiéis é assim iluminada de ano a ano, o senso teológico forma-se neles, e a oração condu-loos ao conhecimento [dos Mistérios da Fé]. Os mistérios continuam a ser mistérios, mas seu esplendor torna-se tão vivo que a mente e o coração se deixam arrebatar por eles, e chegamos a ter uma ideia das alegrias que nos trará a visão eterna destas belezas divinas que, através da nuvem, já nos encantam tanto.
E que fonte de progresso para a alma do cristão, quando o objeto da fé lhe aparece cada vez mais luminoso; quando a esperança da salvação lhe é como que imposta pelo espetáculo de tantas maravilhas que a bondade de Deus realizou em favor do homem; quando o amor se acende nele pelo sopro do Espírito divino, que estabeleceu a Liturgia como centro das suas operações nas almas! Não é a formação de Cristo em nós (Gl 4, 19) o resultado da comunhão nos seus vários mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos? Esses mistérios passam por nós e tornam-se parte de nós, todos os anos, pela graça especial que nos advém de sua comunicaçãoa a nós, na Liturgia, e o homem novo vai se estabelecendo gradualmente sobre as ruínas do velho. Se é necessário que a impressão da forma divina em nós seja favorecida por uma aproximação com os membros da família humana que melhor o realizaram, não nos chegam ensinamentos práticos e encorajamentos através dos nossos queridos Santos, cujo ciclo é como uma estrela? Contemplando-os, conhecemos o caminho que conduz a Cristo, tal como o próprio Cristo nos oferece o Caminho que conduz ao Pai. Mas, acima de todos os santos, Maria brilha mais do que todos eles, oferecendo em si mesma o Espelho da Justiça, onde se reflete toda a santidade possível numa criatura pura.
Finalmente, o Ano Litúrgico, cujo esquema acabamos de delinear, introduzir-nos-á na poesia mais sublime que o homem foi capaz de realizar aqui na terra. Não só nos dará a conhecer os cânticos divinos de David e dos Profetas, que são como que o fundamento do louvor litúrgico; mas o ciclo, no seu decurso, não deixará de inspirar à santa Igreja o que há de mais belo, de mais profundo e de mais digno do seu tema. Por sua vez, ouviremos as várias raças da humanidade, unidas numa só pela fé, exprimir a sua admiração e o seu amor em acentos em que a mais perfeita harmonia de pensamento e sentimento se combina com a mais marcada variedade de gênio e expressão. Rejeitamos da nossa coleção, como é justo e conveniente, certas composições modernas, freauentemente imitadas da literatura secular, e que, não tendo recebido a bênção da santa Igreja, não estão destinadas a viver para sempre; mas recolhemos de todas as épocas os produtos do génio litúrgico: para a Igreja latina, desde Sedúlio e Prudêncio até Adão de Saint-Victor e os seus emuladores; para a Igreja oriental, desde Santo Efrém até aos últimos hinógrafos católicos da Igreja bizantina. A poesia não falta mais nas orações escritas em prosa simples e cadenciada do que naquelas adornadas com um ritmo regular. Na Liturgia, como nas Escrituras inspiradas, ela está em toda a parte, porque só ela está à altura do que deve ser expresso; e a coleção de monumentos da oração pública, à medida que se completa, torna-se também o mais rico repositório da poesia cristã, que canta na terra os mistérios do céu e nos prepara para os cânticos da eternidade.
Seja-nos permitido, ao concluir este Prefácio geral, lembrar aos nossos leitores que, numa obra da natureza desta, o trabalho do escritor está inteiramente sob a dependência do Espírito divino, que sopra onde quer (Jo 3, 8), e não do homem, a quem cabe, no máximo, plantar e regar (1 Cor 3, 6). Ousamos, pois, suplicar aos filhos da Santa Igreja, interessados em reavivar as antigas tradições de oração, que nos dêem o seu apoio diante de Deus, para que a nossa indignidade não seja um obstáculo à obra que empreendemos e que sentimos estar muito para além das nossas possibilidades.
Resta-nos declarar que submetemos a nossa obra, tanto no tom como na forma, ao juízo soberano e infalível da santa Igreja Romana, a única que guarda, juntamente com os segredos da Oração, as Palavras da vida eterna.
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